Se há uns anos Portugal debatia-se com um problema de escolaridade, hoje a principal questão prende-se com as qualificações. Mais precisamente com o acerto entre as competências dadas e as necessidades, efetivas, do mercado, especialmente no que concerne aos adultos. Esse é o ponto onde continuamos a falhar. A solução poderá estar numa maior aposta em programas que envolvam as empresas. Só assim os programas terão, efetivamente, um impacto na economia e na sociedade.
Nos últimos anos, com o apoio de fundos europeus, tem sido feita uma grande aposta no aumento da escolaridade em Portugal. Esta semana foram apresentados os resultados da “Avaliação do contributo do Portugal 2020 para o aumento da qualificação e empregabilidade dos adultos”. Um trabalho desenvolvido pela Ernst & Young para o PO CH. E se os resultados mostraram ser animadores, o debate que se seguiu mostrou que Portugal ainda tem muito para fazer. Que ainda há grandes desafios a vencer.
Questionada sobre se o caminho para o progresso e o crescimento do país está na aposta no reskilling e upskilling dos recursos, Maria João Alves, responsável pelo acompanhamento dos Centros Qualifica – ANQEP, referiu que há uma componente muito forte, nomeadamente não só nos processos de reconhecimento de competências, mas também nos processos de formação mais alinhados com as necessidades do mercado de trabalho. Não é por acaso que muito do trabalho levado a cabo pela ANQEP passa por ajustar a sua atividade, o desenvolvimento das formações e processo de reconhecimento de competências aquilo que são as necessidades do mercado.
Basicamente tenta-se colmatar uma desvantagem estrutural, que é a formação, tema que já foi mencionado por Miguel Cabrita, secretário de Estado Adjunto do Trabalho e Formação Profissional. Ao que Maria João Alves acrescentou que os processos de reconhecimento de competências, quer sejam eles a nível escolar ou profissional, permitem, de alguma forma, fazer essa justiça. “Nós temos muitas pessoas, no mercado de trabalho que, do ponto de vista formal não são qualificadas, mas, através de um processo de reconhecimento de competências, elas podem obter a formalização de uma qualificação que, efetivamente, já desenvolveram ao longo da sua vida, através da aprendizagem no mercado de trabalho”, constatou Maria João Alves, acrescentando que “o nosso esforço vai no sentido de alinhar, através de reskilling, upskilling e formação inicial”.
O certo é que, ainda, os números de Portugal são algo preocupantes. Miguel Cabrita afirmou mesmo que um em cada cinco jovens entra no mercado de trabalho sem ter concluído o ensino secundário. E o défice português começa a aí. O que coloca um desafio ao país: como dotar estes jovens (e os adultos em que eles se transformam) de competências técnicas certificadas por forma a permitir uma maior empregabilidade? Sobre esta questão Armando Loureiro, secretário-geral da Associação Portuguesa para a Educação e Formação de Adultos (APEFA), começou por esclarecer que a educação e a formação, independentemente da idade, são, hoje em dia, instrumentos fundamentais para a coesão social e territorial. Infelizmente, acrescentou, numa houve uma continuidade, uma aposta efetiva na educação e formação de adultos. Não quer isto dizer que seja tudo mau. Pelo contrário. Para Armando Loureiro há sinais positivos, nomeadamente a revisão das Portarias, a continuidade do financiamento de programas como o PO CH, a par da estabilidade política. E estamos na altura ideal, a da preparação da agenda 2030, para limar algumas arestas que existem e que são constrangimentos, e continuar o trabalho “extraordinário” que tem sido feito no âmbito do apoio e dos fundos comunitários – nomeadamente o trabalho levado a cabo pelo PO CH. Para Armando Loureiro temos de continuar a trabalhar na sensibilização e valorização social da educação e formação de adultos. Porque sem esta “muito dificilmente conseguiremos atrair à formação as pessoas que, à partida, terão menos escolaridade”.
Para ultrapassar esta situação o trabalho a ser feito junto dos jovens e nomeadamente a formação no local de trabalho é fundamental. No entanto, Armando Loureiro alerta que também é importante – fundamental até – que as famílias sejam nichos de aprendizagem. Porque “está provado, nomeadamente as mães, que quanto mais qualificação tiverem mais impacto direto há no sucesso dos alunos”. Ou seja, há que atuar em duas frentes. Por um lado nos estudantes, mas também na família. E isto acaba por ter impacto quer nas crianças que ainda estão em processo de aprendizagem, quer nos adultos, sejam eles alunos ou encarregados de educação.
Investir no indivíduo é apostar na sociedade e na economia
O PO CH superou a meta da execução em 2021. Ou seja, quer isto dizer que atingiu 912 mil pessoas. Perante o sucesso dos números há que definir os próximos desafios. Porque o financiamento na formação e na melhoria das qualificações, como lembra Ana Maria Canelas, membro da Assessoria Técnica Científica do Conselho Nacional de Educação (CNE), pode produzir melhores desempenhos nas empresas, na economia, mas, também, nos inputs. O impacto da formação na economia não pode ser descurado, no entanto há que ter em conta que há, igualmente, um impacto social e nos próprios indivíduos.
Uma das dificuldades sentidas prende-se com a mobilização dos adultos menos qualificados. Isso, aponta Ana Maria Canelas, decorre, muitas vezes, da estrutura do tecido empresarial que, em Portugal, é maioritariamente constituído por pequenas e microempresas que, naturalmente, têm mais dificuldades em proporcionar formação aos seus funcionários. A solução para Ana Maria Canelas talvez possa estar no combate a uma política que tem sido muito fragmentada, segmentada e pontual. Nos últimos anos a política em causa tem verificado “altos e baixos” consoante as prioridades que são atribuídas a esta área. A executiva comparou o investimento atribuído à formação de adultos ao montante adjudicado à formação dos jovens. “A formação dos adultos tem sido sempre um parente bastante pobre”, constatou.
O dar visibilidade social à importância de investir nas competências, quer para os indivíduos, quer para as empresas, é uma questão fulcral, na opinião de Ana Maria Canelas, a par, claro, do mostrar os resultados desse investimento.
O desenvolvimento dos programas de formação para os adultos, nomeadamente os com baixas qualificações, não pode reproduzir modelos formais e escolares. “Temos que encontrar metodologias mais adequadas à idade adulta, à experiência de vida e às expectativas das pessoas e das empresas”, alertou Ana Maria Canelas. Talvez “não nos devêssemos focar apenas em formações que se desenvolvem em grupos de formação, com números que, para adultos, são muito elevados e que podem desmobilizar as empresas, os operadores e as próprias pessoas”. Há que trabalhar com o tema da proximidade. Trabalhar com quem está próximo das pessoas e dos territórios. Permitir que o Sistema de Antecipação de Necessidades de Qualificações (SANQ) seja mais específico em função de cada território.
Há quem diga que a formação dos adultos funciona como um elevador social. Um elevador que, na opinião de Fernando Alexandre, vice-presidente do Conselho Económico Social (CES), está avariado. Os problemas de mobilidade estão devidamente identificados. “A educação e as qualificações, nas várias faixas etárias, são essenciais para preparar os indivíduos para serem senhores do seu próprio destino”, referiu, acrescentando que Portugal demorou muito tempo a perceber que as qualificações são um instrumento da própria liberdade dos indivíduos para construírem o seu futuro. Acontece que, quando não há essa aposta, também não funciona do ponto de vista económico.
“Se olharmos para a escolaridade em Portugal desde os aos 70 ela está sempre a aumentar, assim como a produtividade”, constatou o executivo. Acontece que, a partir de 2000, embora a escolaridade continue a aumentar a produtividade estagna. “Normalmente há uma ligação entre o aumento da escolaridade, das qualificações e o crescimento da economia”, mas há exceções. E Portugal é precisamente um daqueles casos em que “não tem estado nos últimos 20 anos”. O que isto significa? Uma possibilidade é “termos mais escolaridade e não haver o incremento equivalente nas competências”. Há algo que em Portugal é muito pouco avaliado, alerta Fernando Alexandre: quais são as competências que cada uma destas qualificações, que são dadas, adicionam às pessoas. O que significa que pode não estar a haver um acompanhamento por parte das competências em relação ao aumento da escolaridade. Mas esse não é a única questão. “Há outras dimensões na economia portuguesa que, depois, não permitem aproveitar as competências que são dadas”, constata o vice-presidente do CES. Ou porque não há um “match” entre as competências dadas e as necessidades da economia ou porque a nossa economia tem uma especialização que não permite o total aproveitamento das competências adquiridas. Há também a questão de a formação com empresas representar um valor irrisório: 1%. O que significa que “não há impacto na economia”. Fernando Alexandre referiu, sobre o tema, um trabalho de Pedro Martins, professor na Universidade Nova e secretário de Estado do Emprego no XIX Governo Constitucional (2011-2015), que mostra que os fundos europeus, quando aplicados através da qualificação dos trabalhadores e em empresas tem um efeito significativo na produtividade. Face a isto, e “no desenho desta política”, Fernando Alexandre considera que deveria haver uma parte maior do orçamento do programa alocado à participação das empresas. Porque o que se vê é a ausência de efeitos na produtividade e empregabilidade. E é algo que tem muito a ver com “o objetivo político do emprego” e que se traduz num desequilíbrio entre a oferta e a procura.
Dar formação não é apenas “recuperar” as pessoas. É, também, refere o vice-presidente do CES, prepará-las para o futuro. Pelo que a questão da formação ao longo da vida deve ser incutida desde já. Afinal, vamos “ter pessoas a viver cada vez mais tempo, e sabemos que a formação ao longo da vida vai ganhar importância”.
O mundo e a tecnologia estão a evoluir. E a requalificação das pessoas para acompanhar essas mudanças é importante. Portugal, por exemplo, está a mudar, mesmo ao nível setorial. Veja-se o caso do apoio social e da área da saúde, que estão em pleno crescimento. “É um setor super intensivo em trabalho, em que vamos precisar de cada vez mais pessoas nessa área, ainda mais estando a população a envelhecer”, reconheceu Fernando Alexandre, que acrescentou que há toda requalificação que é preciso fazer porque também a economia está a mudar. Não só para os adultos em idades mais avançadas, mas para a população em geral. Porque há um novo paradigma do ponto de vista das qualificações.